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Recomendação das Almas: Tradição da Quaresma tem 100 anos e atravessa gerações em Silvianópolis

Terra do Mandu acompanhou tradição rara praticada por católicos, na Quaresma. Grupo canta orações em casas, após às 22h. Rito termina no cemitério.

Nayara Andery / 16 abril 2025

O som da matraca e as vozes de quatro homens levam a tradição centenária da Recomendação das Almas por ruas de Silvianópolis, no Sul de Minas. São mais de 100 anos da tradição, que passa de geração em geração. Ela é praticada na Quaresma, período celebrado pelo catolicismo.

Os ritos ensinados de pai para filho, existem em poucos locais de Minas Gerais. A peregrinação pelas casas é sempre após às 22h. A matraca é o único instrumento, além da voz. As músicas lembram músicas de Folia de Reis.

As casas ficam sempre com portas e janelas fechadas. Os portões são destrancados para receber os rezadores. O capitão do grupo é José Denilson de Almeida. Ele explica o motivo do horário e das casas fechadas.

“Rezamos simbolizando Jesus, no Monte das Oliveiras, enquanto os discípulos ainda dormiam. Chegamos na casa enquanto as pessoas dormem e toco a matraca para dar o sinal que chegamos para rezar, convidando a família a também pedir pelas almas.”

É um ato de devoção que rezar pelas almas das famílias que recebem a oração e dos rezadores, almas de pessoas desamparadas e do purgatório. Em cada casa são entoados cânticos de louvor e pedidos de oração. A matraca é tocada novamente, ao sair da casa.

A tradição veio de Portugal, entre os séculos XVII e XVIII. Esse ritual tem mais uma curiosidade, comentada em alguns locais onde ela existe. Enquanto rezam, ninguém deve olhar para trás. Um motivo seria que as pessoas que olham para trás, poderiam chegar a ver as almas que precisam de ajuda e buscam a oração do grupo.

“Quando a gente chega na casa e está rezando, sente (pede) que aquela alma que está perdida na família, possa ganhar um bom lugar no céu. Quando a gente sai daquela casa, segue em frente. A gente acompanha as almas e pede para elas acompanharem a gente. A gente não fica olhando para trás, para não perder o sentido da oração.”

O Cemitério é o destino final do Grupo Santas Almas Benditas, no último dia da oração quaresmal. Esse é um rito que faz parte da tradição, em vários pontos do Brasil.

“É para lá que levamos as almas que acompanhamos e nos acompanham durante a Recomendação das Almas, como uma forma de ajudar a trazer um caminho para elas”, ressalta Denilson.

O café no fim da reza

Muitas vezes, a última casa visitada a cada dia, tem um café ou lanche. A casa do casal Benedito Silvério e Vanilda Fonseca foi o último ponto do grupo, no dia da reportagem. Eles destacam que têm muita fé na oração pelas almas. .

O casal recebeu os rezadores e a nossa equipe. Primeiro a oração. Sem nenhuma luz acesa, o casal ficou do lado de dentro da sala, rezando, junto com o grupo que entoava os cânticos do lado de fora da porta.

Assim que a matraca tocou simbolizando o fim do rito no local, eles abriram a porta e receberam os rezadores. A reportagem acompanhou tudo de dentro da casa. O café estava servido na cozinha, com pão, carne e refrigerante.

A casa recebe muitas tradições. É o ponto onde há alguns anos se celebra com esse grupo e também Folia de Reis e Congadas, sempre com uma refeição farta e preparada com carinho.

Tradição de gerações

O Grupo Santas Almas Benditas tem amigos, divididos em duas famílias. Os irmãos Daniel Marques e Didier Marques participa da Recomendação das Almas há mais de 4o anos.

A tradição foi aprendida a tradição com os avós e os pais. Nem a idade e nem o cansaço, impedem que eles percorram o trajeto a cada noite, com fé e o desejo de ajudar as almas.

Na memória estão familiares, que participaram na juventude e alguns, participam em outras cidades. Eles lembram da época quando os avós rezavam e as rodovias do entorno ainda eram de terra. As cidades cresceram e muitos moradores pedem a cada ano, que eles rezem nas casas. O desejo deles é que a tradição continue.

Atualmente o grupo é formado pelos irmãos idosos, Denilson e o integrante mais jovem, o filho dele, Ygor Gabriel Pereira, de 17 anos.

Cada um do grupo tem funções diferentes de acordo com a voz, sendo que podem fazer mais de uma voz. O irmão de Denilson, Ivan Pereira de Almeida, gosta de acompanhar o grupo.

“Comecei no grupo com 7 anos, acompanhando pois o meu pai falava muito e aprendi com ele. Já fazia parte da Companhia de Reis aos 3 anos. Com 12 anos comecei a cantar a sétima voz, fui aprimorando meu dom vocal e aprendi a cantar quarta, quinta e sexta vozes”, conta Gabriel.

O amor pela Recomendação das Almas, o levou a convidar amigos, para perpetuar a tradição na cidade. “Convidei bastante amigos jovens, mas muitos pensam ao contrário. Acham que estamos chamando almas, mas não é isso. Estamos rezando para que sigam o caminho delas.”

Para o pai, o “sonho é trazer os mais novos para resgatar essa cultura e manter ela. Mas hoje está difícil. Os mais novos não querem, pensam que é brincadeira, fantasia. Mas todas famílias que nos recebem sabem que é uma coisa séria, de respeito. Enquanto tivermos saúde vamos manter firme a tradição onde formos”.

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