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Morre aos 103 anos o homem mais velho de Inconfidentes e que esteve a um passo da 2ª Guerra Mundial

José Domiciano foi o primeiro vacinado contra a Covid-19 na cidade e faleceu na noite da última quinta-feira (10/02) por causas naturais

Iago Almeida / 14 fevereiro 2022

José Domiciano Vicente nasceu no dia 27 de novembro de 1918 em Bueno Brandão / Foto: Arquivo Pessoal

Morreu na última quinta-feira (10/02), José Domiciano Vicente, que era considerado o homem mais velho de Inconfidentes. Segundo a família, ele não tratava nenhuma doença e morreu por causas naturais. Em nota publicada nas redes sociais, a Prefeitura Municipal prestou homenagem a José Domiciano e lamentou a perda.

José Domiciano Vicente nasceu no dia 27 de novembro de 1918, no bairro Boa Vista dos Vicentes, em Bueno Brandão. Atualmente, o agricultor morava no Bairro Pinhalzinho dos Góes, em Inconfidentes. “Parece que nem tenho esta idade”, brincava o centenário, especialmente quando era convidado a contar a história de sua vida, contou o neto, o jornalista José Valmei Bueno.

“A prefeitura municipal de Inconfidentes presta homenagem à memória do senhor José Domiciano Vicente. Homem mais idoso do município, participou de importantes fatos da história, como a integração à Força Expedicionária Brasileira (FEB), em preparação para a Segunda Guerra Mundial. Tendo sido dispensado da Batalha de Monte Carmelo, sua fé o levou a ir e voltar a pé até à Basílica de Aparecida (SP). Na Paróquia de São Geraldo Magela, ele participou por mais de 40 anos da tradicional Irmandade do Santíssimo Sacramento. José Domiciano deixa um legado de lucidez e de fé. À família e amigos, manifestamos nossa solidariedade”, escreveu a Prefeitura.

O idoso foi sepultado na sexta-feira (11/02), no cemitério Municipal de Inconfidentes. Conheça mais sobre a história de José Domiciano, com frases ditas por ele, durante entrevista cedida ao neto José Valmei em setembro de 2021.

Viagem para a guerra

José Domiciano acompanhou importantes fatos da história. Aos 25 anos, em 1943, foi chamado para integrar a Força Expedicionária Brasileira (FEB), como integrante do 16º Regimento de Infantaria, de Natal, no Rio Grande do Norte. Lá deu início à preparação para os combates da 2ª Guerra Mundial, especialmente para a batalha de Monte Castelo, na Itália.

“Quando saímos de trem da Estação Ferroviária de Ouro Fino, as mães ficaram olhando os filhos partirem, desesperadas”, contou em entrevista ao neto, realizada em setembro de 2021.

Depois de passar um tempo em Juiz de Fora (MG), José Domiciano e os companheiros combatentes seguiram no navio cargueiro “Raul Soares” rumo a Natal. A embarcação saiu do Rio de Janeiro. No meio das sacarias de arroz, de feijão e de milho iam os soldados. O soalho do navio servia de cama. “Para dormir, esticava a coberta no chão. Esta era nossa cama”, contou.

Foto: Arquivo Pessoal

“Por onze dias, o navio rasgou o mar, rumo ao extremo leste do Brasil. A embarcação parava por algumas cidades na beira do mar. Em Salvador, descemos do navio, subimos o elevador Lacerda e fomos conhecer a cidade”, recordou, enfatizando a precariedade dos poucos momentos de lazer que viveram.

 

“Ficamos em casas muito sujas”, comentou. “Mas valeu a pena conhecer algumas das 310 igrejas históricas da capital baiana”, comemorou, com memória clara dos fatos ocorridos há quase 78 anos.

Na rotina da viagem pela costa brasileira, os soldados passavam o dia dormindo. “Não tinha o que fazer. A gente só via água”, completou. Por esta informação, se interpreta o quanto improvisada foi a preparação da FEB para a batalha que se avizinhava. “A comida não era boa”, relatou dizendo o cardápio: carne seca, arroz, batata e feijão sem ser escolhido.

Dias antes do embargue para a guerra, quando já estava no litoral do Rio Grande do Norte, foi liberado pelo Exército Brasileiro por ser “arrimo de família”.

Devoção à Nossa Senhora

Como homem religioso, a liberação do Exército é interpretada por ele como um grande milagre de Nossa Senhora. “Foi ela que me livrou da guerra”, confessa.

Viagens de navio e de trem marcaram o retorno dos treinamentos militares a Bueno Brandão. Ao desembarcar na antiga estação ferroviária de Ouro Fino, sua fé na Virgem Maria o fez ir até à igreja de Nossa Senhora da Piedade, em Crisólia.

“Saí de Natal com a decisão de ir primeiro visitar Nossa Senhora da Piedade, antes de voltar para a casa de meu pai”, disse José Domiciano. A pé, ele foi para Crisólia. Fez suas orações na igreja do distrito e retornou para pernoitar em Ouro Fino.

Quando amanheceu, era hora de dar a boa notícia para os pais. Partiu, novamente a pé, em direção à casa do “Dinho” e da “Dinha”, como ele chamava seus pais. Era entardecer quando avistou a casinha onde os pais moravam.

“Bati na porta! Quando meu pai abriu, caiu no choro”, disse emocionado. “É o José quem está voltando”, contou ter ouvido sua mãe dizer ao longe, antes de cobri-lo de abraços.

Ida e volta, a pé a Aparecida

Um outro momento importante de sua vida foi uma grande façanha de fé. Em gratidão pelo retorno dos treinamentos para a guerra, ele decidiu ir e voltar a pé a Aparecida.

“Quando lá cheguei, contornei a Basílica Velha ajoelhado no chão em agradecimento por esta grande graça”, relatou com voz convicta. Ele foi acompanhado por amigos e parentes. Os cavalos levaram as malas.“Eu via meus companheiros indo a cavalo. Cansado, dava vontade de montar. Mas me mantive fiel ao cumprimento de minha promessa. Fui e voltei a pé”, relembrou.

Imagem de quando foi e voltou à pé ao Santuário Nacional de Aparecida-SP (José Domiciano é o segundo da esquerda para a direita) / Foto: Arquivo Pessoal

Uma paixão

Um de seus maiores desejos, enquanto estava no Exército, era reencontrar a namorada, Isolina Veronez, moradora de um sítio entre os bairros Pinhalzinho dos Góes e Cambuizinho. Isolina era filha dos imigrantes italianos Angelo Veronez e Bernite Brajão. Com a mulher de sua vida, ele se comunicava por meios de cartas. As expressões “contrariado por estar um pouquinho longe” e “de longe também se ama” podem ser lidas no papel envelhecido que ele guarda até hoje, em um antigo baú de madeira.

Foto: Arquivo Pessoal

Com ela se casou em 1945 e formou família. Isolina deixou de morar no antigo casarão construído pelo pai e foi residir com o esposo no bairro Boa Vista dos Vicentes e mais tarde, na Boa Vista dos Pedros. Lá os dois viveram por cerca de 17 anos e, com o falecimento do senhor Angelo Veronez, o casal foi morar perto da “nona”, nas proximidades do antigo casarão, a fim de fazer-lhe companhia. Até hoje José Domiciano vive nesta casa, sob os pés de uma colina, onde corre uma refrescante nascente d’água, sob a sombra de um exuberante bambuzeiro.

Nesta casa, atualmente ele é cuidado pelas filhas, filho e netos. José Domiciano nunca está sozinho. A família organizou um sistema de revezamento para garantir companhia a ele. As filhas cozinham, limpam a casa e dão medicação. O filho e netos dão banho e cuidam da higiene. “A gente pode cuidar, então vamos cuidar”, comentou a filha mais velha, Terezinha Domiciano.

Lúcido e zeloso pela ciência dos fatos ao seu redor, José Domiciano cultiva o senso de realidade e sabe se posicionar sobre os diferentes assuntos da sociedade e de sua vida pessoal. A rotina de orações, de conversas com a família e de busca de informações pela TV preenche seu tempo, o mesmo tempo que lhe permitiu superar a barreira de um século de história.

Entrevista cedida por José Valmei Bueno, neto de José Domiciano e Jornalista do Serviço Público Federal. 

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