Conexões: Ele proibia-me até de sorrir, diz Maria de Lurdes

Ana Beraldo / 17 maio 2019

Natural de Coimbra, Maria relata fragmentos de sua história de vida com ênfase da sua luta de cinco anos para conseguir o divórcio, documentada aqui com a carta que ela enviou à juíza, responsável pelo processo. Conheci-a durante passeio nas ruínas de Conimbriga, vila de Coimbra, e diante do meu interesse, ela compartilhou parte de sua trajetória de vida.

Maria de Lurdes durante passeio nas ruínas de Conimbriga.

Conheci Maria no Domingo de Páscoa em um ponto de ônibus em Coimbra. O destino, o mesmo: a vila de Condeixa. Ela, de volta para casa, após almoço com as amigas à margem do rio Mondego, que divide a cidade. Eu, com o intuito de visitar as ruínas romanas de Conimbriga, a principal estação arqueológica portuguesa, que fica naquela região.

E a conversa iniciada no ponto de ônibus vai fluindo durante o percurso. E Maria que iria saltar antes, gentilmente, resolve me acompanhar no passeio.

E pouco a pouco a confiança se instaura. E fragmentos de sua história de vida são narrados por ela, naturalmente. Ouço-a com atenção – e encantamento – a história do seu primeiro amor, um seminarista, que ela conheceu durante a Procissão da Rainha Santa, em Coimbra.

Enamorados, ele rompeu com a vida espiritual para tristeza da mãe dele que queria vê-lo padre. Um lindo amor vivido, mas por pouco tempo. Os caminhos se separam, quando ele é convocado para a Guerra em Angola, que teve início em 1975, após a independência da colônia de Portugal.

Ouço-a com atenção – e empatia – quando seu olhar se entristece ao contar o segundo e longo capítulo de sua vida de casada. O marido, de um nível intelectual considerável, mas com postura machista e tirana. “Ele proibia-me de sorrir, de dançar, de estudar…”.

Ao final do passeio, disse-lhe que gostaria de relatar sua história de vida, pois o teor de suas revelações retratava uma mulher forte e corajosa que ao decidir romper com uma relação sufocante, dentro de uma cultura machista e patriarcal, deu seu grito de liberdade e de enfrentamento de uma realidade, até então, desconhecida por ela.

E foi aí que ela me surpreendeu ao dizer: “Por que não publicar a carta que enviei à juíza que cuidava do meu processo de separação, escrita no terceiro ano desse e que se arrastou por cinco anos, paralisando minha vida, me desgastando por inteira? ”

E aí está:

CARTA À JUÍZA     

“Coimbra, 16 de fevereiro de 2010

Excelentíssima Juíza,

Quero viver em paz e serenidade. Por que não me dão esse direito? Refiro-me em concreto ao meu divórcio. Já vai fazer três anos que dei entrada no tribunal da Comarca de Coimbra, com o pedido de divórcio, dada a impossibilidade de compatibilidade de podermos coabitar juntos, eu e o pai dos meus filhos. Foram 40 anos de vivências conflituosas e angustiantes.

Desgastaram-me de tal modo, que cheguei ao ponto de não aguentar mais. Especificamente: prepotência, o não reconhecimento ao meu direito de pensar e agir em consonância. O simples facto de assistir à Eucaristia, ser catequista e colaborar na caminhada da Igreja, era sempre aquele inferno de discussão. Saíam palavras obscenas sempre. Ter pessoas amigas, também estava fora de causa…

Refiro também, que no âmbito das atividades da igreja, remei sempre contra a maré e prossegui com muito esforço, pois tenho consciência nunca ter descuidado os meus deveres enquanto dona de casa.

Tudo se tornaria mais leve, se não existisse oposição, só por si. Tudo desmoronou, quando assumi trabalhar a tempo inteiro, contra sua vontade. Reconheço agora que devia tê-lo feito há muitos anos atrás. Errei pensando que fazendo-lhe a vontade, ao estar disponível para, não só para os afazeres quotidianos da casa, mas também fora da casa, ou seja, trabalhos na agricultura: sementeira de batatas e apanha, criação de animais, entre os quais, galinhas e suínos.  Inclusive fazendo a procriação destes, com todo o trabalho que lhe é inerente. Recolha de lenha, vindima, e sua logística envolvente.

Tudo isto impediu que me vinculasse a uma entidade patronal. Mas sempre fui trabalhando a par, fora de casa a meio tempo. Precisava de o fazer, não só para me sentir realizada como pessoa, mas também por necessidade financeira. Sempre me foi dado dinheiro contado. Nunca fui autônoma, não me reconhecia esse direito.

Desmoronou, dizia eu, quando da saída dos meus filhos de casa, os dois, em simultâneo. Minha filha, para casar; meu filho, para viver a sua independência. Apercebi-me da trave a cair, eram eles que me ajudavam a lidar com toda a situação, sem que me apercebesse muito bem dos danos causados. Muni-me de coragem e falei-lhe sobre a minha pretensão. Tive medo que me maltratasse, mas pensei, se me fizer mal, toda a maneira ando a morrer aos poucos. Não me levou a sério. Até o dia que fomos à presença do juiz. Aí sim, acreditou.

Daí para a frente foi o inferno. Ameaças verbais, com facas, tentativa forçada para entrar no meu quarto, partiu o vidro da porta da entrada, para me intimidar. Cortou-me a eletricidade, sabotou o gás para eu não ter água quente, enfim, fez-me a vida negra. Tive muito medo e fui obrigada a sair de casa, indo viver com os tios, com os quais fui criada. Entretanto ia lá a minha casa com eles, para trazer a minha correspondência, e mesmo na presença deles, fez tentativa de me apertar o pescoço, dizendo a berrar, que eu lhe metia nojo. Sabotou as fechaduras, impedindo-me de entrar em casa. O meu advogado moveu-lhe uma ação, para que fosse obrigado a abrir-me as portas. Só lá vou com o meu filho.

Atualmente, a situação é a seguinte: já ocorreram duas audiências, a Dra. Juíza não apurou factos, pelos testemunhos que justifiquem o divórcio. Conclusão: continuamos casados. Por quê e para quê ? Meus tios, entretanto, faleceram num acidente de viação. Fui forçada a alugar um quarto, onde vivo em condições precárias. Do meu magro salário, ordenado mínimo, tenho que fazer face às despesas inerentes à minha vida, com o peso acrescido, do aluguel do quarto, tendo eu uma casa, sendo impedida de lá viver pela razão da força, e não pela força da razão.

Até quando? Tenho 58 anos, preciso de estabilidade tanto física, como emocional para poder viver em paz e serenidade. Tenho direito ao meu espaço digno, trabalhei muito por ele e negam-me esse direito, não é justo. Deus não está de acordo com esta situação, tenho a certeza. É forçoso que dê início a outro processo de pedido de divórcio. Desta vez, vou pedir apoio jurídico, pois já esgotei as minhas economias, e não tenho mais possibilidades financeiras.

Este desabafo tem por objetivo, alertar a quem de direito, no âmbito de todo este sistema tão moroso, que massacra, mexendo de modo contundente com as nossas vidas. Desgastando-nos, corroendo o nosso âmago. Por que se imputa tanto sofrimento ao ser humano, quando se tem idoneidade e sabemos o que queremos? Nem sequer existem filhos menores. E estes, sendo de maioridade, não só compreendem, porque sempre assistiram a toda a vivência, como é lógico, pois estiveram sempre em casa, até há três anos atrás, como consideram, que já devia eu, ter tomado esta decisão há muito mais tempo. Teria sido uma pessoa muito mais feliz. Dito pelo meu filho, quando lhes anunciei a minha decisão. Sem mais, subscrevo-me com toda a consideração de vossa Exa.

Maria de Lurdes”

Fragilizada, Maria saiu do jogo no segundo tempo, que seria a luta na justiça pela partilha igualitária dos bens. Sabedora da morosidade e do desgaste emocional que viveria, aceitou a divisão ofertada pelo ex-marido. Com o dinheiro comprou uma casinha em Condeixa, onde vive há um ano, próximo da filha e da netinha.

Novos tempos: Maria ri, canta, passeia, tem amigos, trabalha fora e é feliz.


Arquivo pessoal.

Sobre Ana Beraldo

Ana Beraldo, jornalista, produtora cultural, autora de livros, contadora – e boa ouvinte – de histórias. É coautora do museu virtual Memória do Povo e do site Portal do Vestibular  – que traz informações sobre cursos superiores no Sul de Minas -, e outras coisitas mais. Espiritualista, andante, ativista da paz e do amor universal.

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